O presente artigo foi elaborado e apresentado por Francisco António Souto, durante o fóro sobre Comercialização e Industrialização realizado em Nampula, distrito do Monapo, no dia 29 de Agosto. Este evento constitui o culminar da visita do Chefe de Estado, Filipe Jacinto Nyusi, à província de Nampula. O autor é co-fundador da Gapi, que foi formalmente constituída em Março de 1990 e, actualmente, exerce as funções de Conselheiro Principal.
1. Identificação do problema
O argumento que aqui se apresenta é o de que a comercialização agrícola, apesar de ser vital para o crescimento económico inclusivo do país, está impedida de realizar o seu papel devido à natureza e características do sistema financeiro que hoje existe em Moçambique.
Um indicador da gravidade deste problema consiste no facto de cerca de 67% da população moçambicana viver nas zonas rurais, mas cerca de 54% desta população, produzir apenas para consumo, estando portanto numa economia de subsistência. Dos que vivem do cultivo, apenas 2% são agricultores comerciais. Portanto, mais de metade da população rural não tem capacidade e/ou não tem motivação para produzir excedentes para vender de forma regular e com qualidade com o objectivo de realizar dinheiro e comprar outros bens essenciais à melhoria das suas condições de vida.
Cerca de 1/3 das famílias moçambicanas vive do cultivo ou do que a natureza ao seu redor oferece. E assim sobrevive com poucas diferenças do que os seus pais e avós faziam há dezenas de anos. Esta população vive permanentemente na linha da sobrevivência vulnerável às muitas adversidiades da natureza.
2. Desalinhamento entre Sistema financeiro e necessidades do desenvolvimento
Porque é que esta situação prevalece 45 anos após a indpendência e 33 anos após abraçarmos os programas de ajustamento estrutural e adoptarmos os princípios e práticas de uma economia de mercado? Onde está e o que é economia de mercado nas nossas zonas rurais?
A resposta que adianto a esta anomalia é a existência de um crescente desalinhamento entre:
- por um lado, um sistema fincanceiro concentrado em instituições bancárias que, por sua vez, estão cada vez mais focadas no segmento designado por “corporate”;
- por outro lado, temos um sistema de produção e comercialização onde a esmagadora maioria dos operadores – agricultores familiares, pequenos e médios comerciantes – não são corporate nem sabem o que isso é.
- A banca comercial está cada vez mais obrigada a seguir regras que decorrem dos acordos de Basileia 2 e 3 que têm os seus pressupostos em sistemas económicos altamente ordenados e formais. Por isso, o financiamento bancário à comercialização concentra-se nas grandes empresas cuja actividade está orientada para bens de exportação.
Como em todas as economias, os consumidores, isto é, a procura determina o que deve ser produzido, para ser aceite pelo mercado. A forma como funciona a comercialização agrícola em Moçambique, reflecte ainda e em grande medida uma estrutura económica colonial, onde a procura é determinada pela necessidade de abastecer os mercados externos. O mercado interno ainda não é o factor determinante.
Por isso, há algum crédito bancário às grandes empresas ligadas à produção e/ou comercialização de açúcar, tabaco, algodão, cajú, madeiras, feijão boer; mas é absolutamente insuficiente o financiamento para os milhares de pequenos comerciantes e pequenas industrias que compram aos cerca de 3 milhões de agricultores familiares a sua produção de milho, mapira, mandioca, amendoim, tomate, batata, feijão nhemba…
Quem exporta, tem divisas, e isso é negócio que interessa à banca comercial e ao gestor das reservas para importações. Quem não exporta só tem acesso a crédito bancário se tiver um bom histórico no banco, além de garantias reais e/ou financeiras acima de 100% do montante do crédito.
Nos últimos anos, até mesmo as empresas que investiram (e estão aqui algumas delas) na agro-industria, incentivando a produção para exportação, não escapam à agressividade de operadores piratas ao serviço de interesses financeiros estrangeiros. As campanhas de compra de caju aos camponeses são um bom exemplo de como a comercialização desregulada pode ser um meio de lavagem de dinheiro, e, muito provavelmente, também um meio de exportação ilegal de capitais.
Em suma, financiar e regular a comercialização é um assunto central para o nosso desenvolvimento, que carece de uma intervenção na perspectiva financeira, mas também de lei e ordem.
3. Inclusão financeira limitada
O recente estudo-avaliação do FinScope baseado no inquérito aos consumidores de serviços financeiros mostra-nos que a realização dos objectivos da estratégia do Governo para a inclusão financeira está enfrentando enormes desafios.
Esse estudo, focado nos cerca de 14,2 milhões de habitantes adultos que hoje somos em Moçambique, mostra-nos que entre 2014 e 2019, a população completamente excluida de serviços financeiros reduziu de 60% para 46%. Isso é um avanço que importa referir.
Porém, nesses mesmos cinco anos, e apesar dos esforços de programas como a bancarização – 1 distrito 1 banco – a percentagem de adultos com conta bancária e apesar de todos os investimentos feitos, apenas subiu 1%, passando de 20% para 21%. Neste período, quem de facto fez crescer a inclusão financeira foi o sector informal, que subiu de 27% para 32%, bem como os serviços de mobile money que cresceram bastante, passando de 10% para 41%.
É duvidoso que este crescimento da inclusão financeira altere o dificil acesso dos comerciantes rurais e das pequenas indústrias ao capital necessário para melhorar as suas capacidades de armazenagem, compra e transporte de insumos interagindo com os cerca de 3 milhões de agricultores familiares.
Os operadores de mobile money não dão crédito, apenas agilizam transações. Os informais, que também cresceram, não fazem crédito com ética, fazem agiotagem.
O deficiente financiamento à comercialização agrícola bloqueia a modernização da agricultura no sentido dela ser mais eficiente, abrangente, resiliente e contribuir mais para o abastecimento dos mercados internos e garantir niveis mínimos de segurança alimentar.
4. Uma experiência em abrir caminhos e construir soluções
O problema da falta de financiamento às actividades de desenvolvimento em Moçambique tem sido muito debatido, particularmente desde que em 1987 iniciámos a implementação do Programa de Restruturação Económica. Esse debate abordou os seguintes desafios:
- Como privatizar se não temos um sector privado?
- Mais recentemente, com a expansão da banca, se o sector privado comercial nacional é limitado, que clientela e serviços poderão os bancos comerciais servir e fornecer?
Desse debate e com envolvimento do Governo nasceram várias propostas. Uma delas foi a necessidade de se criar uma instituição “semi-privada” (actualmente diz-se público-privada) que oferecesse um conjunto de serviços para estimular o surgimento de um sector privado com raízes na economia real, em particular na agricultura, comércio rural e pequena indústria.
Foi esse o contexto em que, em 1990, há 30 anos, com a participação do Estado, surgiu a Gapi. Adoptou-se uma estratégia de intervenção integrando financiamento ligado com programas de capacitação dos pequenos empresários e promoção de instituições de apoio.
A Gapi nasceu do conceito de Apoio à Pequena Indústria, por isso nos chamávamos de Gabinete de Apoio à Pequena Indústra. Desde as nossas raízes privilegiamos o papel das pequenas indústrias focadas no mercado local, valorizando a matéria prima local e o consumidor local.
Nampula é um bom testemunho deste modelo de instituição financeira de desenvolvimento capaz de perceber os desafios que enfrentamos para abrir caminhos e construir soluções.
Aqui, em 2003, numa parceria com o MIC apoiámos o relançamento da indústria do caju.
Aqui fizemos uma parceria com a maior empresa pública – os CFM – para converter milhares de trabalhadores reformados em novos empresários de pequenos negócios capazes de gerar postos de trabalho. Eram redundantes lá; foram produzir noutras novas unidades.
Aqui, há 23 anos, em parceria com 23 associações de produtores envolvendo cerca de 10 mil camponeses criámos uma instituição – a Ikuru – que hoje consegue aceder a crédito para repassar às famílias camponesas. Ontem assisti em Mogovolas ao florescimento e sucesso dos campos de produção de sementes de cajú policlonal, bem como à parceria que esses camponeses estabeceram com a empresa Condor para incentivar a modernização de cajuais. Os camponeses são privados tal como o são as empresas de processamento. Na nossa estratégia é importante promover a interação comercial entre estes difeentes segmentos. Estamos a apoiar o seu trabalho para criarem a sua própria Organização de Poupança e Empréstimo, que é um banco dos próprios produtores, a exemplo de outros que já temos no país .
No sector das pescas respondemos aos desafios do Governo para estruturar a cadeia de valor do pescado e, a pedido do Ministério que tutela a actividade pesqueira, convertemos uma ruina e uma empresa falida em Angoche numa entidade hoje licenciada pela UE e que processa e coloca o produto de centenas de pescadores artesanais em mercados europeus e também no sistema do chamado “local content” no Norte de Moçambique.
Entre muitas outras iniciativas, foi também aqui em Nampula que iniciámos a implementação do Programa Agro-Jovem que V.Exa, Senhor Presidente, lançou e acarinhou em Junho de 2015 em Maputo. O sucesso dessa iniciativa preparou-nos para uma intervenção mais ampla que designamos por Juve-Inova e que pretende estimular e apoiar a capacidade empreendedora de milhares de jovens. Nesta província surgiram dezenas de jovens técnicos que não foram pedir emprego aos ministérios, nem a ONGs, pois criaram e estão a operar as suas próprias micro-empresas.
Abordar e solucionar este tipo de problemas e desafios não está na missão de bancos comerciais. Portanto, não estou a criticar os bancos, mas simplesmente a dizer que não está na missão deles, nem nas competências de ONGs que, cada vez mais viajam para aqui, Isto é papel de uma instituição com uma missão focada no desenvolvimento empresarial com inclusão. É o que a Gapi fez, é o que a Gapi faz.
Em suma, a experiência da Gapi como instituição financeira de desenvolvimento parceira estratégica do Governo é algo que continua a consolidar-se particularmente perante as dificuldades que o país hoje enfrenta.
5. Os desafios da comercialização
Voltando aos desafios da comercialização a que acima me referi, é importante mencionar que já estão em prática soluções que comprovam a eficácia de parcerias público-privadas entre instituições nacionais.
Há pouco mais de um ano, o Instituto de Cereais de Moçambique (ICM) em parceria com a GAPI-SI criaram uma Linha de Crédito Especial para Apoio à Comercialização Agrícola, abreviadamente designada por LCCA, comparticipada pelas duas entidades, com um pequeno valor de 90,6 milhões de meticais pata testarmos o modelo.
Até 31 de Julho de 2020 foram financiadas 137 operações no valor de 149,05 milhões de Meticais, sendo 63% na zona norte, que permitiram comercializar 86 mil toneladas de diversos produtos agrícolas envolvendo, directa e indirectamente, cerca de 90 mil famílias nas zonas rurais, com uma taxa de retorno entre 94 a 96%. Isto mostra que há uma gestão profissional e com ética destes instrumentos.
6. Propostas de medidas
Passo a apresentar algumas propostas de medidas com vista a melhorarmos o sistema de comercialização.
A primeira medida, parece óbvia e tem por base os resultados já alcançados pela LCCA,. Propomos o urgente reforço desta linha de crédito, pois ela tem o potencial de produzir resultados a curto e médio prazo. Alguns dos problemas levantados nesta sala têm solução imediata sem necessidade de instrumentos legais adicionais.
Uma segunda medida está focada na necessidade e oportunidade que a actual crise nos oferece para centenas de milhares de informais virarem comerciantes formais. As discussões em curso entre o MIC e a Gapi projectam uma intervenção que contribuirá para que através de programas que adoptam uma metodologia integrada de financiamento e capacitação é possivel converter milhares de jovens na actividade formal, bem como empoderar mulheres com sentido empreendedor. Esta intervenção pretende também contribuir para o alargamento e reforço da base fiscal das nossas finanças públicas, pois a formalização terá beneficios e responsabilidades para todo o tipo de operadores comerciais. Aí, a lei e ordem terá um quadro mais claro para poder intervir também contra muitos piratas e ilegais que hoje operam impunemente.
Uma terceira medida concentra-se na necessidade urgente de intervir na requalificação dos mercados. Esta proposta foi apresentada à Comissão Técnico-Cientifica e à ANAMM que a acolheram com agrado. Ela contem um conjunto de medidas económicas e sociais que complementam as medidas de caractarer sanitário já em curso. Esta medida está interligada com a anterior no que concerne à conversão de mercados informais em centros comerciais municipais, dando dignidade às mães e futuro aos jovens que hoje estão lá numa luta pela sobrevivência . Isto é relevante também por razões de higienização desses espaços e proteção contra as futuras e inevitáveis epidemias que vão surgir. Esta medida enquadra-se também no cumprimento do objectivo 11 dos ODS relativo à necessidade das cidades serem sustentáveis.
No sector do cajú e na sequência do que estamos fazendo com as associações de produtores da Ikuru e ao visitar ontem, em Mogovolas, o Cajual comunitário de Manlahipa e o campo de produção de semente Policlonal de castanha de cajú, propomos um programa que replique e expanda o que ali está sendo feito. Propomos um programa que consiste numa interação entre industriais e as comunidades. Que seja um programa com acesso a assistência tecnológica para replantio de cajueiros com sementes policlonais e apoio às organizações sócio-ecnoómicas dos produtores. Como disse, são organizações que incluem domínio da tecnologia, capacitação em negócios e literacia financeira para terem o seu microbanco local.
Por fim, outra medida onde pretendemos juntar forças é o estimulo à pequena indústria com impacto na economia local. As raízes da Gapi estão na pequena indústria e, hoje, com a globalização da economia, temos de saber como acrescentar valor localmente, principalmente no sector da agro-industria.
Termino sublinhando que não se pode ser forte na concorrência internacional que a globalização hoje nos impõe se, internamente, não estivermos minimamente consolidados e estruturados.
Francisco António Souto
Nampula, 29 de Agosto de 2020