Sistema Financeiro e Exclusão Social

A “comercialização agrícola, apesar de ser vital para o crescimento económico inclusivo do país, está impedida de realizar o seu papel devido à natureza e características do sistema  financeiro que hoje existe em Moçambique”.

Cito e retomo aqui a afirmação que  fiz na conferência sobre comercialização e industrialização realizada dia 29 de Agosto em Nampula, para despertar um debate sobre políticas e medidas que tornem o sistema  financeiro moçambicano um factor gerador de inclusão social e económica.


Francisco António Souto • Economista

As dinâmicas dos processos de comercialização agrícola oferecem-nos uma radiografia da deformação do sistema  financeiro prevalecente em Moçambique. Esta radiografia alerta para a percepção de que o sistema  financeiro está induzindo desigualdade, favorecendo a concentração de renda em operadores identificados como “corporate”.

Um indicador da gravidade deste problema consiste no facto de 1cerca de 67% da população moçambicana viver nas zonas rurais, mas cerca de 54% desta população, produzir apenas para consumo, estando portanto numa economia de subsistência.

Dos que vivem do cultivo, apenas 2% são agricultores comerciais. Portanto, mais de metade da população rural não tem capacidade e/ou não tem motivação para produzir excedentes para vender de forma regular em quantidade e qualidade com o objectivo de realizar dinheiro e poder comprar outros bens essenciais à melhoria das suas condições de vida.

Cerca de 1/3 das famílias moçambicanas vive do cultivo ou do que a natureza ao seu redor oferece. Esta população vive permanentemente vulnerável às muitas adversidades da natureza.

Porque é que esta situação prevalece 33 anos após abraçarmos os programas de ajustamento estrutural e terem sido adoptados os princípios e práticas de uma economia de mercado? Onde está e o que é economia de mercado nas zonas rurais de Moçambique?

Quem exporta, tem divisas, e isso é negócio que interessa à banca comercial e ao gestor das reservas para importações

Uma das razões desta anomalia é a existência de um crescente desalinhamento entre:

  • por um lado, um sistema fincanceiro concentrado em instituições bancárias que, por sua vez, estão cada vez mais focadas no segmento designado por “corporate”;
  • por outro lado, temos um sistema de produção e comercialização onde a esmagadora maioria dos operadores – agricultores familiares, pequenos e médios comerciantes – não são corporate embora operem subordinados a regras de mercado impostas por corporações.

Devido a este desalinhamento, o pouco financiamento bancário à comercialização concentra-se nas grandes empresas, cuja actividade está orientada para bens de exportação. Mas não se espere que a banca comercial satisfaça a procura de crédito por parte de novos pequenos negócios com garantias frágeis.

A banca comercial está cada vez mais obrigada a seguir regras que decorrem dos acordos de Basileia 2 e 3 que têm os seus pressupostos em

economias desenvolvidas com sistemas financeiros formais profusamente instalados. Estas regras amarram as instituições financeiras formais ao cumprimento de uma matriz de gestão prudencial focada em objectivos estritos de políticas monetárias que não incorporam objectivos de inclusão social e económica específicos de sociedades ainda eminentemente informais. Em Moçambique, menos de 9% dos adultos têm uma ocupação

profissional ligada ao sector formal.

Assim, há algum crédito bancário às grandes empresas ligadas à produção e/ou comercialização de açúcar, tabaco, algodão, cajú, madeiras, feijão boer; mas é absolutamente insuficiente o financiamento para os milhares de pequenos comerciantes e pequenas industrias que compram aos cerca de 3 milhões de agricultores familiares a sua produção de milho, mapira, mandioca, amendoim, tomate, batata, feijão nhemba…

Quem exporta, tem divisas, e isso é negócio que interessa à banca comercial e ao gestor das reservas para importações. Quem não exporta só tem acesso a crédito bancário se tiver “boas famílias” e um bom histórico no banco, além de garantias reais e/ou financeiras acima de 100% do montante do crédito.

Além disso, nos últimos anos, até mesmo algumas empresas que investiram na agro-industria, incentivando a produção para exportação, não escapam à agressividade de operadores piratas ao serviço de interesse financeiros estrangeiros. As campanhas de compra de caju aos camponeses são um bom exemplo de como a comercialização desregulada pode ser um meio de lavagem de dinheiro e, muito provavelmente, também um meio de exportação ilegal de capitais.

E, contudo, as medidas de política monetária restritivas e, algum excesso de zelo burocrático-administrativo relativamente aos operadores formais de microfinanças, têm alargado o campo de manobra de um sector informal que opera impunemente e em concorrência com os que se submetem aos procedimentos de um regulador zeloso em fazer cumprir os normativos de uma matriz tipo “one size fits all”.

É duvidoso que o crescimento da inclusão financeira por estas vias altere o difícil acesso dos comerciantes rurais e das pequenas indústrias ao capital necessário para melhorar as suas capacidades de armazenagem, compra e transporte de insumos interagindo com os cerca de 3 milhões de agricultores familiares

O estudo-avaliação do FinScope recentemente publicado, focado nos cerca de 14,2 milhões de habitantes adultos que hoje somos em Moçambique, mostra-nos que, entre 2014 e 2019, a população completamente excluida de serviços financeiros reduziu de 60% para 46%. Isso é um avanço que importa referir.

Porém, nesses mesmos cinco anos, e apesar dos esforços de programas como a bancarização – 1 distrito 1 banco – a percentagem de adultos com conta bancária, apenas subiu 1%, passando de 20% para 21%. Neste período, quem de facto fez crescer a inclusão financeira foi o sector informal, que subiu de 27% para 32%, bem como os serviços de mobile money que cresceram bastante, passando de 10% para 41%.

É duvidoso que o crescimento da inclusão financeira por estas vias altere o dificil acesso dos comerciantes rurais e das pequenas indústrias ao capital necessário para melhorar as suas capacidades de armazenagem, compra e transporte de insumos interagindo com os cerca de 3 milhões de agricultores familiares.  Os operadores de mobile money não dão crédito, apenas agilizam transações. Os informais, que também cresceram, não fazem crédito com ética, fazem agiotagem ou lavagem de dinheiro.

Esta é uma radiografia que recomenda uma cuidadosa reflexão porque está em preparação nova legislação sobre o sistema financeiro. As legislações de 1989 emendada em 2004 foram uma primeira geração de reformas do quadro legal do sistema financeiro. Em ambas o foco foi desestatizar o sistema financeiro e demarcar o território legal da banca comercial privada. Tem sido assim por quase toda a África.

Mas, também por quase toda a África subsahariana aprofunda-se o debate sobre o nexus entre desenvolvimento dos sistemas financeiros e o agravamento das desigualdades sociais. Estudos produzidos por vários académicos chamam a atenção para a necessidade de uma diversificação dos canais de oferta de serviços e de produtos financeiros capazes de responder à procura dos diferentes segmentos.

Hoje, em Moçambique, estão em operação 19 bancos comerciais que realizam mais de 99% da actividade financeira. Em países desenvolvidos com sistemas financeiros consolidados é muito mais relevante o papel das sociedades financeiras de desenvolvimento; das cooperativas de crédito; dos sistemas de mutualismo e outros.

Hoje, em Moçambique, estes canais alternativos são praticamente inexistentes. Temos de nos interrogar sobre o porquê deste cenário.

Esses estudos observam que sistemas excessivamente dependentes de bancos comerciais favorecem as camadas sociais e operadores comerciais de rendimento mais alto. Sendo estes os mais capazes de poupar e aceder a instituições altamente formais, são também apenas os mesmos que acedem ao benefício do uso da liquidez disponível no sistema como um todo… ainda que essa liquidez resulte da produção de milhões de agricultores familiares e de pequenos comerciantes e artesãos.

Concluo sublinhado que o sistema financeiro de um país não é agnóstico relativamente aos desafios da inclusão social e económica. Se uma nova geração de reformas do sistema financeiro não tomar em conta este objectivo, a crescente exclusão social a que assistimos em Moçambique e, em geral, por toda a Africa, continuará a alimentar focos de instabilidade política e social com implicações na estabilidade e continuidade de estados e nações ainda não consolidados

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